sábado, 20 de janeiro de 2024

Globalismo ou neocolonialismo?


Felipe Vieira – jornalista 17-01-2024
https://felipevieira.com.br/site/detalhes-noticia/?id=306970

Àbeiradourbanismo
Nada contra brasileiros irem estudar nas grandes universidades dos EUA. Mas a iniciativa, vinda de onde vem e justificada como está, mais parece um ato de neocolonialismo urbanístico.

Segundo Ling, “nosso planejamento urbano fica aquém das melhores práticas globais.” A prova? “Crise habitacional com moradias precárias ou caras, falta de infraestrutura, ruas perigosas e inundações. Tempo gasto em um deslocamento insustentável, com espaços públicos repletos de carros e carentes de pessoas.”

Se fosse simples assim, eu diria que o Instituto escolheu, para conceder as bolsas, o país errado: nos EUA, parte substancial do espaço urbanizado está há décadas reservado pela legislação para residências unifamiliares, em subúrbios que o próprio Ling qualificou, em artigo de 14-11-2023, de “verde insustentável baseado no conceito ultrapassado de cidade-jardim”.[1]

À parte o fato de que o espraiamento suburbano dos EUA não tem nada a ver com o "conceito de cidade-jardim", foi sobre o "verde insustentável" de suas urbanizações unifamiliares periféricas - vendidas a crédito barato e acessadas por automóveis baratos movidos a gasolina barata sobre uma vasta rede de rodovias federais e estaduais - que os Estados Unidos se ergueram como maior potência industrial e financeira do planeta.

Agora eu pergunto: você acredita que os nossos próceres do urbanismo liberal criticariam 60 anos atrás o verde insustentável dos subúrbios americanos independentemente de seu sucesso no plano dos negócios e da economia em geral? Opor-se-iam a William Alonso, máximo expoente da economia espacial neoclássica, que por essa época alertava os defensores da revitalização em larga escala das áreas centrais obsolescentes de Nova York para o provável fracasso de seus planos por não levarem em conta a preferência da demanda pelos subúrbios? [2]

Ou será que o fazem porque o mercado imobiliário brasileiro e, em alguma medida, também o dos EUA dos dias atuais favorecem um “princípio urbanístico” radicalmente oposto: a concentração da propriedade urbana de alta e média renda em condomínios verticais nas zonas pericentrais das grandes cidades, onde o rendimento do capital investido por m2 útil produzido é muito maior e a espiral ascendente de preços garantida pela concentração imparável da renda nacional?

Não nos enganemos: o urbanismo liberal em alta no Brasil não visa práticas urbanísticas social e ambientalmente sustentáveis, mas a liberação do “adensamento” construtivo nos nichos metropolitanos de média e alta renda, em favor do qual a “redução do tempo de deslocamento”, as “ruas movimentadas” e o “uso intensivo dos espaços públicos” não passam de pontos de venda convenientes, facilmente relacionáveis, num plano bastante abstrato, à eficiência da infraestrutura e à redução das distâncias.

É mais do que hora, creio, da
 atual geração de planejadores brasileiros reconhecer que há, em curso, uma bem-organizada campanha para desqualificá-la profissionalmente, e sair em campo para explicar ao público (a) que não é o planejamento urbano a força motriz da construção das cidades, mas o mercado de bens imobiliários e serviços urbanos [2a], com a ajuda do Estado provedor de, antes de tudo, infraestruturas indispensáveis à boa marcha dos negócios; (b) que os problemas urbanos listados ora pelos desavisados como resultado da “falta de planejamento” ora pelos mais-do-que-avisados como resultado do “excesso de planejamento” são, quase todos, produto de imensos desequilíbrios do próprio mercado em um país fabulosamente desigual em todos os sentidos do termo; e (c) que o planejamento urbano governamental, a despeito de suas contradições, limitações intrínsecas e eventuais equívocos, é uma atividade indispensável, e em circunstâncias favoráveis razoavelmente eficaz, para a busca de padrões minimamente satisfatórios de equidade de direitos, deveres e oportunidades urbanas.

Se partíssemos da hipótese, que parece em alta, de que tudo o que acontece em nossas cidades é fruto de decisões de política urbana [2b], seria difícil negar que boa parte da responsabilidade pelas agruras que hoje as atingem cabe aos 20 anos de políticas federais a cargo do Ministério da Cidade lulista, ainda que intercalados por quatro de devastação bolsonarista. 

Contudo, nossas metrópoles não nasceram no século XXI. Tampouco seus problemas. E como explicou a certa altura o insuspeito Paul Krugman [3], não é incomum governos nacionais serem responsabilizados por fenômenos econômicos que não ajudaram a criar. Dito de outra forma, governos não determinam os ciclos expansivos e recessivos da economia - reagem a eles distribuindo, cada um à sua maneira, seus custos e benefícios. 

Eu penso que o mesmo se aplica às cidades - ressalvados naturalmente os casos que, à luz dos critérios usuais, possam ser classificados como gestão municipal catastrófica. Inspirado em Benevolo [3], vejo o planejamento urbano como um conjunto de técnicas preventivas e corretivas destinadas a minimizar e compensar os problemas socioambientais produzidos pela urbanização de mercado. [4]

O papel crítico do mercado imobiliário na criação de riqueza à escala planetária, incluindo fabulosas quantidades de títulos de dívida que hoje constituem parte substancial das grandes fortunas e carteiras de investimento privadas (e fazem da crise chinesa uma constante ameaça de "repique" do colapso financeiro ocidental de 2008) talvez explique porque um governo progressista, mas essencialmente pragmático, como o que temos hoje no Brasil, reserve ao Ministério das Cidades finalidades políticas que nada têm a ver com a batalha pelo desenvolvimento urbano ambiental e socialmente sustentável. 

Por todas essas razões, insisto, não reconhecer as limitações inerentes ao exercício da profissão de planejador em face da urbanização de mercado - e o que é pior, numa circunstância em que as entidades profissionais não parecem propensas a iniciativas independentes - é dar, de graça, munição aos que acusam o planejamento urbano brasileiro de “ficar aquém das melhores práticas globais”.

E onde se hão de encontrar as "melhores práticas globais" reclamadas pelo urbanismo liberal? No México? Índia? Zimbabwe? Meu palpite é que, à parte os EUA, meca do "livre mercado" a cujas grandes universidades se destinam as bolsas do Instituto Ling, elas estarão quase sempre em países como Suécia, Austrália e Japão, onde o produto per capita é muito mais elevado do que a média mundial e os rendimentos familiares muito menos desigualmente distribuídos.

E não há nada como riqueza nacional abundante e razoavelmente distribuída para gerar ambientes urbanos dignos de uma sociedade que se pretende civilizada.

2024-01-20

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[1] “O verde insustentável do subúrbio americano”. ArchDaily 25-12-2023, por Anthony LING.
https://www.archdaily.com.br/br/1009032/o-verde-insustentavel-do-suburbio-americano 

[2] ALONSO W, “The Historic and the Structural Theories of Urban Form: Their Implications for Urban Renewal”. Land Economics Vol. 40, No.2 (May, 1964), pp. 227-231. University of Wisconsin Press.
https://docs.google.com/document/d/1-bHp274ABR8iKw3TvP4Et2Z6YOpjQbOq1ppaSC4mczk/edit?usp=sharing

[2a] “Yo creo que el arquitecto no tiene tanto poder de decisión. Es el mercado quien diseñó nuestras ciudades, es el mercado el que las ha hecho como son, los arquitectos fueron los cómplices necesarios.” [Entrevista com Carme PINÓS, Público 15-03-2021] 
https://www.publico.es/entrevistas/carme-pinos-mercado-diseno-ciudades-arquitectos-complices.html

[2b] “A tese central do livro [O Planejamento da Desigualdade. São Paulo: Fósforo 2022] é que todas as características da cidade foram fruto de decisões tomadas de política urbana num determinado momento. E essa conformação centro-periferia foi fruto de uma decisão política, tomada pela cidade a partir dos anos 30-40, portanto antes da metropolização.” [Entrevista com Raquel ROLNIK, Estúdio CBN 24-01-2022]

[3] "There has always been a deep unfairness about the relationship between economics and politics: Presidents get both credit and blame for events that usually have little to do with their actions". "Here Comes the Trump Slump”, New York Times 03-10-2019 por Paul KRUGMAN.
[4] “O urbanismo moderno não nasceu junto com o processo técnico e econômico que gerou e moldou a cidade industrial. Veio mais tarde, quando ficou claro que os efeitos quantitativos dessas transformações geraram tantos conflitos que era imprescindível remediá-los. Até hoje a técnica urbanística aparece, o mais das vezes, com atraso relativamente aos acontecimentos que tem por missão controlar e guarda um caráter curativo.” [BENEVOLO L (1963), Aux sources del’urbanisme moderne. Paris: Horizons de France 1972. [Trad. PJ]